sábado, 6 de abril de 2013

Domingo à tarde



Está a nevar. Enquanto procuro o gorro algures no meu armário, já a minha irmã grita comigo nas escadas para fazer um boneco de neve, enfim, começa o ritual.
Recheados de roupa, fomos para o jardim. Chegámos então ao céu: só faltavam os anjinhos a tocar harpa, enfasando tremendo espetáculo da Natureza.
Sempre gostei de neve, mas nunca gostei de frio. O carnaval que ali se instalava, por entre esculturas magníficas e caídas espetaculares tornava o momento único, reconfortante e sobretudo era um programa de humor e talento escultural de grande qualidade.
Apareciam grandes bonecos, habilmente retocados e com direito a acessórios, bem à imagem do Homem, tal Deus. Apareciam também construções mais generosas em forma de grandes berlindes, que ao fim de algum tempo a adicionar piratuças faziam-se grandes edifícios branquinhos, praticamente imóveis, que se assemelhavam a templos.
Sempre tive pouco jeito para fazer bonecos, a veia construtiva foi para a minha irmã que ganhava os Jogos Olímpicos da construção no nosso jardim com unânime decisão do matrimónio e de alguns convidados especiais.
A neve e as construções, efémeras, iam-se despegando da terra, que esperava retomar o ocre que lhe tinham roubado. Espalhado estava por toda a parte o branco, com classe, como as feiras que há na minha terra.
Tínhamos o privilégio de poder observar este fogo de artifício alvo pelo menos uma vez por ano e ainda assim as pessoas brincavam e surpreendiam-se como se fosse a primeira vez.
Como somos ingénuos.
Amamos o que é fácil, como diria o senhor de negro que avistava a neve de longe e ria-se perante tais figuras.
A nossa capacidade de fazer leves amizades com o tempo torna-nos frágeis, sentimentais, iguais a cãezinhos que esperam a próxima carícia ou a próxima lambidela da mãe. Assim nos temos conservado ao longo deste eixo horizontal, onde nascem e renascem flores e são reinventadas fórmulas de calcular o desgosto e a felicidade e até quem sabe áreas e perímetros de figuras que estão para aparecer de um mundo de ideias, uma espécie de armazém do Universo de tudo o que possa existir onde ninguém sabe fazer contas nem bonecos e o vazio espera o regresso da neve, como o meu jardim que espreita de soslaio a vinda de novas construções.
Podem-nos tirar aquilo que sempre nos habituámos a ver e a cheirar, aquilo que nos faz sentir o bater do coração desde a ponta das unhas dos pés, aquilo que nos liga à terra e às coisas, pois o Mundo há de inventar novas formas de nos encontrar-mos, porque quem quer que nos esteja a ver, há de saber.
Entretanto vamos vivendo sob um céu que tememos em dias de chuva e admiramos em noites estreladas ao sabor da música de gerações que traz o vento de muito longe.
Os bonecos lentamente iam começando a derreter.
Até que se aguentou bem o meu...

Thibaut Ferreira, Lisboa 6 de Abril