segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Parabéns Pai.

Cheguei a casa. Estava às escuras. Era Sexta.
Enquanto ajeito o casaco e pouso o guarda-chuva no chão vou adivinhando o interruptor da luz.
Não sei que horas eram mas era de noite: menos agora que o corredor já se iluminava.
Estava cansado: dia de trabalho e uma reunião a mais. Tinha comido há umas horas um daqueles croissants das máquinas: tresandava a fome. Nem valia a pena tentar    superfícies comerciais, que já tinham fechado.
Antes de começar a desbravar o frigorífico preferi pôr-me à vontade, ritual que mantinha desde criança: tirar o fato macaco e trocar por umas calças de fato treino, uma camisola quentinha e uns chinelos.
Eram as onze dizia o relógio do quarto.
No frigorífico tinha umas coisinhas: polpa de tomate, queijo, fiambre e um bocado de frango que acabei por não cozinhar ontem. Cebolas, confere. Azeite, confere.
Na prateleira acima tinha massa e ficou bastante claro que era massa com frango que ia fazer.
É difícil cozinhar com fome!
Enquanto esperava que a massa namorasse com o frango vou ligando a televisão, tiro um prato, talheres e um guardanapo.
Nunca fui muito de televisão. Notícias repetitivas do mal estar do Mundo e da pouca credibilidade dos nossos políticos aliada às belíssimas novelas que retratam com muita precisão o estado do país e das pessoas. Mudei para o canal de cozinha: ah! Agora estou bem. Cozinhar e ver programas de cozinha parece-me ser a companhia ideal. Vou buscar uma fatia de pão e aproveito para encher um copo de água.
Enquanto vou disfrutando do meu manjar, os olhos vão comendo um pouco do jantar do Avillez.
Estava saciado. Estava bem.
Agora mais lento com a barriga cheia vou deslizando até ao meu quarto. Sentei-me e como o estore ainda estava meio aberto, contemplava a vista: meia dúzia de prédios com as luzes dos andares alternadamente ligadas, três no primeiro andar daquele, dois no segundo andar do outro e um no quarto andar acolá. Tinha um hotel e um banco com as suas luzinhas rotativas bem visíveis. Os aviões que iam passando a cada quinze segundos iam-me distraindo o olhar até desaparecem da janela. Teriam fome os passageiros? Estariam cansados? Estariam felizes? Não sei, mas ainda assim pensava nisso...
O céu estava rosado e eu ouvia Pink Floyd. Tinha parado de chover.
Desviei o olhar para o relógio. Já era amanhã e o meu pai fazia anos: continuava um homem jovem, muito trabalhador e saudável.
Já não visitava os meus pais havia três meses. Pensei em fazer-lhe uma surpresa. Pensei em enviar-lhe uma carta. Pensei em mandar-lhe uma música. Sei lá. Pensei em várias coisas.
Resolvi escrever-lhe qualquer coisa.
Quando eu era pequeno o meu pai castigava-me com textos. Era mesmo chato: uma página, tantos carateres, entregar no fim da semana, traduzir para mirandês e eu só queria bola. Podiam ser umas contas de mais ou vezes, até podia, como era castigo, por mais uma casa decimal ou pedir contas de dividir que era sempre o cabo dos trabalhos: mas eram textos, sempre textos.
Havia vezes que era comentar notícias do jornal: ora Nordeste ora Mensageiro de Bragança que tinha uma rúbrica - Diz o Zé que – e que provavelmente ainda hoje deve ter coisas para dizer naquele jornal. Grande Zé.
A parte boa dos textos é que depois o trabalhávamos, ensinando-me a escrever direito por linhas direitas.
Fui crescendo e o número de páginas foi acompanhando. Estranhamente fui-me habituando e comecei até a desenvolver um certo gosto pela escrita: não pensem que gostava de ser castigado! Ia escrevendo, guardando textos com muito ou pouco significado, grandes ou pequenos, meio história meio desabafo.
Agradeço-lhe a criatividade dos castigos. Até nisso era artista!
Hoje já só vou escrevendo para o trabalho: relatórios, relatórios e mais relatórios. De vez em quando umas cronicazinhas num jornal online, mas muito pouco: tanto como os leitores. Uma vergonha.
Enquanto ia pensando no que escrever ao meu pai fui correndo as pastas que tinha no computador de alguns textos que escrevera havia uns anos. Encontrei perdida uma compilação que se assemelhava a um pseudo-diário com umas dezenas de textos, tudo um pouco misterioso. Estavam dispostos por numeração romana. Vem-me agora à lembrança que era para um futuro livro. Que inocente.
Ri-me: num misto entre uma expiração forçada e um gesto com metade do lábio.
Fui abrindo os documentos, lendo, rindo, pensando. Fez-se bastante tarde. Deitei-me. Não escrevi nada.
Começava agora o fim de semana e já tinha decidido o que ia fazer: escrever. Tinha que acabar qualquer coisa legível para enviar ao meu mestre. Ia pensando naquilo que me tinha ensinado, os pormenores, a construção, isto e aquilo, meio ouvindo-o. Decidi não lhe pôr título para ser ele a nomeá-lo - consideremos como uma espécie de castigo.
Meditei sobre o conteúdo. Mas o que hei de dizer? Falo da Natureza? Falo da vida? Falo da chuva? Falo dele?
Com o cotovelo apoiado na mesa e a cabeça apoiada na mão num gesto algo preguiçoso, cerrava os olhos. Pus os fones. Estava a ouvir António Jobim. O pensamento escorria-me do cérebro e arramava-se pelos meus lábios que agora esboçavam sons cariocas. As minhas pernas, lentas, completamente fora de tempo tentavam acompanhar o samba. Que desajeitado estava e a música nunca mais acabava ou era eu que tinha perdido a noção do tempo, melancólico ao som de António Jobim, quase adormecido. Nada me distraía. Fazia-me lembrar o meu pai quando se sentava aos Domingos depois de almoço no salão, encostado à janela que recebia mais luz, no sofá verde a ler um livrão. Tinha os óculos colocados na ponta do nariz, os pés, descalços, brancos tal cal, dispostos sobre outro sofá, também ele verde. Nada o distraía. Falava com ele e parece que não sentia a minha presença.
Sempre me impressionou a abstração profunda com que ficava. Estaria ele mesmo a ler? Ou estaria a dormir acordado? Ria-me.
Quando o confrontava com tal capacidade, num tom inocente, dizia-me que não sabia o que era. Ria-me outra vez e a minha mãe juntava-se à galhofa enquanto lhe afagava o cabelo dobrado para trás, jeito do penteado que orgulhosamente tomava conta todas as manhãs. Dá-lhe um ar intelectual e sério.
E eu parecia um bebé embalado naquela música mágica, calma e relaxante. Onde ia o texto? Nem eu sabia. Ambelezei-me, como dizia a minha avó em mirandês.
Estático como as máscaras do meu pai acabei por não escrever nada mais uma vez.
Acordei pelas nove, danado: nada feito e nem tinha ligado a desejar os parabéns. Filho desnaturado.
Liguei-lhe. Falámos durante uma hora. Sobre nada mesmo. Coisas sem importância, mas segundo ele eram as únicas coisas que nos distinguiam dos macacos. Gostava daquelas conversas. O tom descontraído de um homem que já caminhava para lá da meia secularidade embrulhava-me na charla interessante sobre nada: eram as minhas preferidas. Seriam as tuas também?
E agora terminava o dia. Mais um ano. Duas primaveras. O sol ajeita a cama lá ao longe e continuamos a conversar, alheios da cor do céu ou da velocidade do vento.






Parabéns pai,
Abraço



Thibaut Bandarra.

Vamos fingir o dia.

domingo, 6 de outubro de 2013

Um dolitá, nada de números desta vez


Comecei a escrever este pseudo-diário com base em alguns desabafos que me iam passando pela cabeça numa tentativa algo estranha de desanuviar.
Em todos os textos que fui escrevendo nesse registo, fui apenas desbravando caminhos turvos, caminhos tristes, confusos, que tentei de alguma forma remediar ou alterar: para ser sincero nunca tive um rasgo de felicidade, “escritamente” falando.
Há dias para tudo, reajustando a expressão.
Hoje é um dia para desabar a felicidade que tenho.
Sou um rapaz feliz, grosso modo. Tenho grandes amigos, uma grande família e um país com um clima bastante agradável, diga-se.
Adoro rir. Mas assim a sério. Gosto também de fazer rir os outros, dar um bocadinho não da minha felicidade que não vendo dessas coisas, mas da minha simpatia, do meu bem-estar, porque coisas como felicidade não se dão nem se emprestam e também não se compram.
O sorriso das pessoas, a correspondência da minha ingenuidade é, foi e será sempre algo que me manterá “vivo”, porque quer queiramos quer não, a felicidade dos outros faz parte da nossa felicidade.
Estou realmente feliz. Sorrio a escrever. Está uma bela noite.
Adoro música, tanto como as tartes da minha mãe. Tenho saudades dos meus pais, mas sinto-os perto a cada telefonema, a cada piada seca, molhada, morna, nem interessa. Sinto que as saudades se desfazem em palavras e no arroz que me mandam de vez em quando. A distância, a saudade, o amor serão sempre duros de roer, mas creio que a nossa dentadura é rija o suficiente para aguentar.
Estou na rua, a saborear a brisa quase de verão a cada pedaço de vento que me passa nas narinas. Adoro o verão.
Este ano foi, até agora, o mais incrível que já tive. Já sou homem e a barba cresce cada vez mais rápido. A minha memória de nomes, caras, fórmulas, números, letras, sons vai dilatando e começo a entender umas coisas de Economia.
Não é por nada, mas estou mesmo bem cá fora, faz-me lembrar Sendim, o meu jardim e os odores das plantas crescidas com montes de cores das quais só metade sei o nome. Metade? Qual metade? Nem um quinto. De vez em quando ajudo a minha mãe a regá-las. São bonitas mas a beleza dá trabalho, como ela costuma dizer. De calções, chinelas e um mini escaldão no pescoço vou alimentando aquelas cores e fico feliz por contribuir para a magia daquele local.
As estrelas estão bastante visíveis, sim, vê-se a Ursa Maior, aquela sertã mal desenhada, mas tão brilhante que nos esquecemos que reluzem a muito longe, tão longe que nem dá para entender muito bem.
 Desde que estou em Lisboa, olhar as estrelas lembra-me o Douro. O dourado que é refletido por aquela imensidão de água é quase tão bonito como o loiro cabelo da minha irmã. Está uma mulher.
A quietude da Natureza, visível do meu quarto lá longe também me faz falta. Mas saborear esses prazeres esporadicamente, torna-os mais incríveis, mais apetecíveis.
Fazer desporto também me faz feliz. Perder uns quilitos, suar um bocado e treinar o espírito de equipa: remédio santo para dormir bem. Com os exames à porta, tenho tentado manter o ritmo para ver se durmo alguma coisa, mais que não seja com as dores de pernas.
Tenho pena de não conseguir passar das duas páginas, preciso de mais treino.
Para acabar, vou só dizer mais uma coisinha: riam-se e façam rir a vossa família. Quanto a vocês não sei, mas a minha família é mais do que aquilo que me está no sangue.

Thibaut Bandarra
Lisboa,
Algures em Junho


sábado, 6 de abril de 2013

Domingo à tarde



Está a nevar. Enquanto procuro o gorro algures no meu armário, já a minha irmã grita comigo nas escadas para fazer um boneco de neve, enfim, começa o ritual.
Recheados de roupa, fomos para o jardim. Chegámos então ao céu: só faltavam os anjinhos a tocar harpa, enfasando tremendo espetáculo da Natureza.
Sempre gostei de neve, mas nunca gostei de frio. O carnaval que ali se instalava, por entre esculturas magníficas e caídas espetaculares tornava o momento único, reconfortante e sobretudo era um programa de humor e talento escultural de grande qualidade.
Apareciam grandes bonecos, habilmente retocados e com direito a acessórios, bem à imagem do Homem, tal Deus. Apareciam também construções mais generosas em forma de grandes berlindes, que ao fim de algum tempo a adicionar piratuças faziam-se grandes edifícios branquinhos, praticamente imóveis, que se assemelhavam a templos.
Sempre tive pouco jeito para fazer bonecos, a veia construtiva foi para a minha irmã que ganhava os Jogos Olímpicos da construção no nosso jardim com unânime decisão do matrimónio e de alguns convidados especiais.
A neve e as construções, efémeras, iam-se despegando da terra, que esperava retomar o ocre que lhe tinham roubado. Espalhado estava por toda a parte o branco, com classe, como as feiras que há na minha terra.
Tínhamos o privilégio de poder observar este fogo de artifício alvo pelo menos uma vez por ano e ainda assim as pessoas brincavam e surpreendiam-se como se fosse a primeira vez.
Como somos ingénuos.
Amamos o que é fácil, como diria o senhor de negro que avistava a neve de longe e ria-se perante tais figuras.
A nossa capacidade de fazer leves amizades com o tempo torna-nos frágeis, sentimentais, iguais a cãezinhos que esperam a próxima carícia ou a próxima lambidela da mãe. Assim nos temos conservado ao longo deste eixo horizontal, onde nascem e renascem flores e são reinventadas fórmulas de calcular o desgosto e a felicidade e até quem sabe áreas e perímetros de figuras que estão para aparecer de um mundo de ideias, uma espécie de armazém do Universo de tudo o que possa existir onde ninguém sabe fazer contas nem bonecos e o vazio espera o regresso da neve, como o meu jardim que espreita de soslaio a vinda de novas construções.
Podem-nos tirar aquilo que sempre nos habituámos a ver e a cheirar, aquilo que nos faz sentir o bater do coração desde a ponta das unhas dos pés, aquilo que nos liga à terra e às coisas, pois o Mundo há de inventar novas formas de nos encontrar-mos, porque quem quer que nos esteja a ver, há de saber.
Entretanto vamos vivendo sob um céu que tememos em dias de chuva e admiramos em noites estreladas ao sabor da música de gerações que traz o vento de muito longe.
Os bonecos lentamente iam começando a derreter.
Até que se aguentou bem o meu...

Thibaut Ferreira, Lisboa 6 de Abril 

domingo, 27 de janeiro de 2013

Piratuças



Piratuças


Estou em casa, deitado no sofá. O jantar faz as despedidas e o sono começa a apoderar-se.
 A pouca luz que ilumina a sala, torna o ambiente propício ao pensamento e reflexão depois de um dia exaustivamente desprovido deste momento de descanso.
 No penúltimo levantar de sofá, removo a manta e procuro os auscultadores algures no meu quarto. Encontro-os e volto para o Olimpo. Recostado, bem aconchegado oiço música antes de fazer o último levantar do sofá que não sei quando será. Realmente posso ficar a dormir aqui, estou bem.
Olho para janela, ainda semicerrada  pelas cortinas, que reflete a reduzida luz que ainda há na rua.
 Desligo a luz do telemóvel e fico praticamente às escuras. A Xara salta-me para o sofá.
Temos uma gata que adora andar aos saltos pela casa com os mais variados objetos. Se fizerem barulho ao andar pelo chão, são esses os preferidos dela. Era um berlinde. Não faço a mínima ideia de como um berlinde foi ali ter.
Berlindes: enquanto me rio da imprevisibilidade do facto, lembro-me dos imensos episódios com aquela rodinha de vidro. Os antigos jogos de primária, jogos de garotos que ainda não sabiam o que eram livros de Biologia e de Química e não consta que soubessem fazer equações. Eram tempos felizes esses. Não é que esteja particularmente chateado com a minha vida, mas era diferente. Muitos ganhei, perdi, comprei, parti. O futebol do nosso tempo.
 Como é que uma coisa tão pequena nos fazia assim tão felizes?
Comecei a pensar que nós realmente somos mesmo pequenos, universalmente falando. O ser humano é 30 ou 40 vezes mais pequeno que uma baleia e as baleias são miles de vezes mais pequenas que a Terra e a Terra milhões de vezes mais pequena que o sol e sol é um pontinho que nem se vê, sentadinho num bracinho de uma galáxia que é muito mais pequena que outras. Somos mesmos pequenos e ainda assim conseguimos fazer os outros felizes, tal e qual os berlindes me faziam.
Não fiquei a desgostar berlindes. Sempre admirei aquela exímia técnica de lançamento, a coleção dos miúdos com montes de cores e feitios que nos faziam lutar por ganhá-los em apostas. Rio-me outra vez.
 Quanto mais caminhamos para lá da dezena, mais percebemos que a cada degrau que vamos subindo as coisas grandes começam a ficar mais lá no fundo e mingam. Fazem-nos agora felizes: sorrisos, enormes gargalhadas, um prato especial, uma noite com os amigos, um beijo da mãe e um abraço forte do pai ou os avós ricos de saúde. O algo desconhecido vai-se adaptando à nossa alma que cresce sem nos apercebermos. De repente ficamos “grandes”. Na verdade ficamos pequenos, cada vez mais pequenos, parecemos os bem e malmequer de um jardim engendrados em descobrir as essências mais estapafúrdias. Refletimos mais, paramos mais e sabemos agora coisas que não interessam a ninguém. O saber vai-nos enrugando a pele, depositando-se. Agora tenho oitenta e três anos. Os meus netos jogam ao berlinde e divertem-se imenso.
 Tenho cem, gostava de poder conversar com os meus avós, iríamos ter uma rica conversa!
 Transformei-me em terra. Desabrocham dezenas de malmequeres e os bens e os males dispersam-se como irmãos ao longo do campo, verde, voando ao sabor do vento que trás as histórias da minha avó e o cheiro da minha terra sob o enorme céu azul.
 Era Verão.

Thibaut Ferreira
Lisboa, 28/01/2013