Cheguei a casa. Estava às
escuras. Era Sexta.
Enquanto ajeito o casaco e pouso
o guarda-chuva no chão vou adivinhando o interruptor da luz.
Não sei que horas eram mas era de
noite: menos agora que o corredor já se iluminava.
Estava cansado: dia de trabalho e
uma reunião a mais. Tinha comido há umas horas um daqueles croissants das máquinas: tresandava a fome. Nem valia a pena tentar superfícies comerciais, que já tinham
fechado.
Antes de começar a desbravar o
frigorífico preferi pôr-me à vontade, ritual que mantinha desde criança: tirar
o fato macaco e trocar por umas calças de fato treino, uma camisola quentinha e
uns chinelos.
Eram as onze dizia o relógio do
quarto.
No frigorífico tinha umas coisinhas:
polpa de tomate, queijo, fiambre e um bocado de frango que acabei por não
cozinhar ontem. Cebolas, confere. Azeite, confere.
Na prateleira acima tinha massa e
ficou bastante claro que era massa com frango que ia fazer.
É difícil cozinhar com fome!
Enquanto esperava que a massa
namorasse com o frango vou ligando a televisão, tiro um prato, talheres e um
guardanapo.
Nunca fui muito de televisão.
Notícias repetitivas do mal estar do Mundo e da pouca credibilidade dos nossos
políticos aliada às belíssimas novelas que retratam com muita precisão o estado
do país e das pessoas. Mudei para o canal de cozinha: ah! Agora estou bem. Cozinhar
e ver programas de cozinha parece-me ser a companhia ideal. Vou buscar uma
fatia de pão e aproveito para encher um copo de água.
Enquanto vou disfrutando do meu
manjar, os olhos vão comendo um pouco do jantar do Avillez.
Estava saciado. Estava bem.
Agora mais lento com a barriga
cheia vou deslizando até ao meu quarto. Sentei-me e como o estore ainda estava meio
aberto, contemplava a vista: meia dúzia de prédios com as luzes dos andares
alternadamente ligadas, três no primeiro andar daquele, dois no segundo andar
do outro e um no quarto andar acolá. Tinha um hotel e um banco com as suas
luzinhas rotativas bem visíveis. Os aviões que iam passando a cada quinze segundos
iam-me distraindo o olhar até desaparecem da janela. Teriam fome os
passageiros? Estariam cansados? Estariam felizes? Não sei, mas ainda assim
pensava nisso...
O céu estava rosado e eu ouvia
Pink Floyd. Tinha parado de chover.
Desviei o olhar para o relógio. Já
era amanhã e o meu pai fazia anos: continuava um homem jovem, muito trabalhador
e saudável.
Já não visitava os meus pais
havia três meses. Pensei em fazer-lhe uma surpresa. Pensei em enviar-lhe uma
carta. Pensei em mandar-lhe uma música. Sei lá. Pensei em várias coisas.
Resolvi escrever-lhe qualquer
coisa.
Quando eu era pequeno o meu pai
castigava-me com textos. Era mesmo chato: uma página, tantos carateres,
entregar no fim da semana, traduzir para mirandês e eu só queria bola. Podiam
ser umas contas de mais ou vezes, até podia, como era castigo, por mais uma
casa decimal ou pedir contas de dividir que era sempre o cabo dos trabalhos:
mas eram textos, sempre textos.
Havia vezes que era comentar notícias
do jornal: ora Nordeste ora Mensageiro de Bragança que tinha uma rúbrica - Diz
o Zé que – e que provavelmente ainda hoje deve ter coisas para dizer naquele
jornal. Grande Zé.
A parte boa dos textos é que
depois o trabalhávamos, ensinando-me a escrever direito por linhas direitas.
Fui crescendo e o número de
páginas foi acompanhando. Estranhamente fui-me habituando e comecei até a
desenvolver um certo gosto pela escrita: não pensem que gostava de ser
castigado! Ia escrevendo, guardando textos com muito ou pouco significado,
grandes ou pequenos, meio história meio desabafo.
Agradeço-lhe a criatividade dos
castigos. Até nisso era artista!
Hoje já só vou escrevendo para o
trabalho: relatórios, relatórios e mais relatórios. De vez em quando umas
cronicazinhas num jornal online, mas muito pouco: tanto como os leitores. Uma
vergonha.
Enquanto ia pensando no que escrever
ao meu pai fui correndo as pastas que tinha no computador de alguns textos que
escrevera havia uns anos. Encontrei perdida uma compilação que se assemelhava a
um pseudo-diário com umas dezenas de textos, tudo um pouco misterioso. Estavam
dispostos por numeração romana. Vem-me agora à lembrança que era para um futuro
livro. Que inocente.
Ri-me: num misto entre uma expiração
forçada e um gesto com metade do lábio.
Fui abrindo os documentos, lendo,
rindo, pensando. Fez-se bastante tarde. Deitei-me. Não escrevi nada.
Começava agora o fim de semana e
já tinha decidido o que ia fazer: escrever. Tinha que acabar qualquer coisa
legível para enviar ao meu mestre. Ia pensando naquilo que me tinha ensinado,
os pormenores, a construção, isto e aquilo, meio ouvindo-o. Decidi não lhe pôr
título para ser ele a nomeá-lo - consideremos como uma espécie de castigo.
Meditei sobre o conteúdo. Mas o
que hei de dizer? Falo da Natureza? Falo da vida? Falo da chuva? Falo dele?
Com o cotovelo apoiado na mesa e
a cabeça apoiada na mão num gesto algo preguiçoso, cerrava os olhos. Pus os
fones. Estava a ouvir António Jobim. O pensamento escorria-me do cérebro e
arramava-se pelos meus lábios que agora esboçavam sons cariocas. As minhas
pernas, lentas, completamente fora de tempo tentavam acompanhar o samba. Que
desajeitado estava e a música nunca mais acabava ou era eu que tinha perdido a
noção do tempo, melancólico ao som de António Jobim, quase adormecido. Nada me
distraía. Fazia-me lembrar o meu pai quando se sentava aos Domingos depois de
almoço no salão, encostado à janela que recebia mais luz, no sofá verde a ler
um livrão. Tinha os óculos colocados na ponta do nariz, os pés, descalços,
brancos tal cal, dispostos sobre outro sofá, também ele verde. Nada o distraía.
Falava com ele e parece que não sentia a minha presença.
Sempre me impressionou a
abstração profunda com que ficava. Estaria ele mesmo a ler? Ou estaria a dormir
acordado? Ria-me.
Quando o confrontava com tal
capacidade, num tom inocente, dizia-me que não sabia o que era. Ria-me outra
vez e a minha mãe juntava-se à galhofa enquanto lhe afagava o cabelo dobrado para
trás, jeito do penteado que orgulhosamente tomava conta todas as manhãs. Dá-lhe
um ar intelectual e sério.
E eu parecia um bebé embalado naquela
música mágica, calma e relaxante. Onde ia o texto? Nem eu sabia. Ambelezei-me,
como dizia a minha avó em mirandês.
Estático como as máscaras do meu
pai acabei por não escrever nada mais uma vez.
Acordei pelas nove, danado: nada
feito e nem tinha ligado a desejar os parabéns. Filho desnaturado.
Liguei-lhe. Falámos durante uma
hora. Sobre nada mesmo. Coisas sem importância, mas segundo ele eram as únicas
coisas que nos distinguiam dos macacos. Gostava daquelas conversas. O tom
descontraído de um homem que já caminhava para lá da meia secularidade embrulhava-me
na charla interessante sobre nada: eram as minhas preferidas. Seriam as tuas
também?
E agora terminava o dia. Mais um
ano. Duas primaveras. O sol ajeita a cama lá ao longe e continuamos a conversar,
alheios da cor do céu ou da velocidade do vento.
Parabéns pai,
Abraço
Thibaut Bandarra.
Vamos fingir o dia.