Está a nevar. Enquanto procuro o
gorro algures no meu armário, já a minha irmã grita comigo nas escadas para
fazer um boneco de neve, enfim, começa o ritual.
Recheados de roupa, fomos para o
jardim. Chegámos então ao céu: só faltavam os anjinhos a tocar harpa, enfasando
tremendo espetáculo da Natureza.
Sempre gostei de neve, mas nunca
gostei de frio. O carnaval que ali se instalava, por entre esculturas
magníficas e caídas espetaculares tornava o momento único, reconfortante e
sobretudo era um programa de humor e talento escultural de grande qualidade.
Apareciam grandes bonecos, habilmente
retocados e com direito a acessórios, bem à imagem do Homem, tal Deus.
Apareciam também construções mais generosas em forma de grandes berlindes, que
ao fim de algum tempo a adicionar piratuças faziam-se grandes edifícios
branquinhos, praticamente imóveis, que se assemelhavam a templos.
Sempre tive pouco jeito para fazer
bonecos, a veia construtiva foi para a minha irmã que ganhava os Jogos
Olímpicos da construção no nosso jardim com unânime decisão do matrimónio e de
alguns convidados especiais.
A neve e as construções, efémeras, iam-se despegando da terra, que esperava retomar o ocre que lhe tinham roubado. Espalhado estava por toda a parte o branco, com classe, como as feiras que há
na minha terra.
Tínhamos o privilégio de poder
observar este fogo de artifício alvo pelo menos uma vez por ano e ainda assim
as pessoas brincavam e surpreendiam-se como se fosse a primeira vez.
Como somos ingénuos.
Amamos o que é fácil, como diria o
senhor de negro que avistava a neve de longe e ria-se perante tais figuras.
A nossa capacidade de fazer leves
amizades com o tempo torna-nos frágeis, sentimentais, iguais a cãezinhos que
esperam a próxima carícia ou a próxima lambidela da mãe. Assim nos temos
conservado ao longo deste eixo horizontal, onde nascem e renascem flores e são
reinventadas fórmulas de calcular o desgosto e a felicidade e até quem sabe
áreas e perímetros de figuras que estão para aparecer de um mundo de ideias, uma
espécie de armazém do Universo de tudo o que possa existir onde ninguém sabe
fazer contas nem bonecos e o vazio espera o regresso da neve, como o meu jardim
que espreita de soslaio a vinda de novas construções.
Podem-nos tirar aquilo que sempre nos
habituámos a ver e a cheirar, aquilo que nos faz sentir o bater do coração desde a ponta das unhas dos pés, aquilo que nos liga à terra e às coisas, pois o Mundo há de
inventar novas formas de nos encontrar-mos, porque quem quer que nos esteja a
ver, há de saber.
Entretanto vamos vivendo sob um céu
que tememos em dias de chuva e admiramos em noites estreladas ao sabor da
música de gerações que traz o vento de muito longe.
Os bonecos lentamente iam começando a
derreter.
Até que se aguentou bem o meu...
Thibaut Ferreira, Lisboa 6 de Abril