Piratuças
Estou em casa, deitado no sofá. O jantar faz
as despedidas e o sono começa a apoderar-se.
A pouca
luz que ilumina a sala, torna o ambiente propício ao pensamento e reflexão
depois de um dia exaustivamente desprovido deste momento de descanso.
No
penúltimo levantar de sofá, removo a manta e procuro os auscultadores algures
no meu quarto. Encontro-os e volto para o Olimpo. Recostado, bem aconchegado
oiço música antes de fazer o último levantar do sofá que não sei quando será.
Realmente posso ficar a dormir aqui, estou bem.
Olho para janela, ainda semicerrada pelas cortinas, que reflete a reduzida luz que
ainda há na rua.
Desligo
a luz do telemóvel e fico praticamente às escuras. A Xara salta-me para o sofá.
Temos uma gata que adora andar aos saltos pela
casa com os mais variados objetos. Se fizerem barulho ao andar pelo chão, são esses
os preferidos dela. Era um berlinde. Não faço a mínima ideia de como um
berlinde foi ali ter.
Berlindes: enquanto me rio da
imprevisibilidade do facto, lembro-me dos imensos episódios com aquela rodinha
de vidro. Os antigos jogos de primária, jogos de garotos que ainda não sabiam o
que eram livros de Biologia e de Química e não consta que soubessem fazer
equações. Eram tempos felizes esses. Não é que esteja particularmente chateado
com a minha vida, mas era diferente. Muitos ganhei, perdi, comprei, parti. O
futebol do nosso tempo.
Como é
que uma coisa tão pequena nos fazia assim tão felizes?
Comecei a pensar que nós realmente somos mesmo
pequenos, universalmente falando. O ser humano é 30 ou 40 vezes mais pequeno
que uma baleia e as baleias são miles
de vezes mais pequenas que a Terra e a Terra milhões de vezes mais pequena que
o sol e sol é um pontinho que nem se vê, sentadinho num bracinho de uma galáxia
que é muito mais pequena que outras. Somos mesmos pequenos e ainda assim
conseguimos fazer os outros felizes, tal e qual os berlindes me faziam.
Não fiquei a desgostar berlindes. Sempre
admirei aquela exímia técnica de lançamento, a coleção dos miúdos com montes de
cores e feitios que nos faziam lutar por ganhá-los em apostas. Rio-me outra
vez.
Quanto
mais caminhamos para lá da dezena, mais percebemos que a cada degrau que vamos
subindo as coisas grandes começam a ficar mais lá no fundo e mingam. Fazem-nos
agora felizes: sorrisos, enormes gargalhadas, um prato especial, uma noite com
os amigos, um beijo da mãe e um abraço forte do pai ou os avós ricos de saúde.
O algo desconhecido vai-se adaptando à nossa alma que cresce sem nos
apercebermos. De repente ficamos “grandes”. Na verdade ficamos pequenos, cada
vez mais pequenos, parecemos os bem e malmequer de um jardim engendrados em
descobrir as essências mais estapafúrdias. Refletimos mais, paramos mais e
sabemos agora coisas que não interessam a ninguém. O saber vai-nos enrugando a
pele, depositando-se. Agora tenho oitenta e três anos. Os meus netos jogam ao
berlinde e divertem-se imenso.
Tenho
cem, gostava de poder conversar com os meus avós, iríamos ter uma rica
conversa!
Transformei-me em terra. Desabrocham dezenas
de malmequeres e os bens e os males dispersam-se como irmãos ao longo do campo,
verde, voando ao sabor do vento que trás as histórias da minha avó e o cheiro
da minha terra sob o enorme céu azul.
Era
Verão.
Thibaut Ferreira
Lisboa, 28/01/2013