domingo, 27 de janeiro de 2013

Piratuças



Piratuças


Estou em casa, deitado no sofá. O jantar faz as despedidas e o sono começa a apoderar-se.
 A pouca luz que ilumina a sala, torna o ambiente propício ao pensamento e reflexão depois de um dia exaustivamente desprovido deste momento de descanso.
 No penúltimo levantar de sofá, removo a manta e procuro os auscultadores algures no meu quarto. Encontro-os e volto para o Olimpo. Recostado, bem aconchegado oiço música antes de fazer o último levantar do sofá que não sei quando será. Realmente posso ficar a dormir aqui, estou bem.
Olho para janela, ainda semicerrada  pelas cortinas, que reflete a reduzida luz que ainda há na rua.
 Desligo a luz do telemóvel e fico praticamente às escuras. A Xara salta-me para o sofá.
Temos uma gata que adora andar aos saltos pela casa com os mais variados objetos. Se fizerem barulho ao andar pelo chão, são esses os preferidos dela. Era um berlinde. Não faço a mínima ideia de como um berlinde foi ali ter.
Berlindes: enquanto me rio da imprevisibilidade do facto, lembro-me dos imensos episódios com aquela rodinha de vidro. Os antigos jogos de primária, jogos de garotos que ainda não sabiam o que eram livros de Biologia e de Química e não consta que soubessem fazer equações. Eram tempos felizes esses. Não é que esteja particularmente chateado com a minha vida, mas era diferente. Muitos ganhei, perdi, comprei, parti. O futebol do nosso tempo.
 Como é que uma coisa tão pequena nos fazia assim tão felizes?
Comecei a pensar que nós realmente somos mesmo pequenos, universalmente falando. O ser humano é 30 ou 40 vezes mais pequeno que uma baleia e as baleias são miles de vezes mais pequenas que a Terra e a Terra milhões de vezes mais pequena que o sol e sol é um pontinho que nem se vê, sentadinho num bracinho de uma galáxia que é muito mais pequena que outras. Somos mesmos pequenos e ainda assim conseguimos fazer os outros felizes, tal e qual os berlindes me faziam.
Não fiquei a desgostar berlindes. Sempre admirei aquela exímia técnica de lançamento, a coleção dos miúdos com montes de cores e feitios que nos faziam lutar por ganhá-los em apostas. Rio-me outra vez.
 Quanto mais caminhamos para lá da dezena, mais percebemos que a cada degrau que vamos subindo as coisas grandes começam a ficar mais lá no fundo e mingam. Fazem-nos agora felizes: sorrisos, enormes gargalhadas, um prato especial, uma noite com os amigos, um beijo da mãe e um abraço forte do pai ou os avós ricos de saúde. O algo desconhecido vai-se adaptando à nossa alma que cresce sem nos apercebermos. De repente ficamos “grandes”. Na verdade ficamos pequenos, cada vez mais pequenos, parecemos os bem e malmequer de um jardim engendrados em descobrir as essências mais estapafúrdias. Refletimos mais, paramos mais e sabemos agora coisas que não interessam a ninguém. O saber vai-nos enrugando a pele, depositando-se. Agora tenho oitenta e três anos. Os meus netos jogam ao berlinde e divertem-se imenso.
 Tenho cem, gostava de poder conversar com os meus avós, iríamos ter uma rica conversa!
 Transformei-me em terra. Desabrocham dezenas de malmequeres e os bens e os males dispersam-se como irmãos ao longo do campo, verde, voando ao sabor do vento que trás as histórias da minha avó e o cheiro da minha terra sob o enorme céu azul.
 Era Verão.

Thibaut Ferreira
Lisboa, 28/01/2013